- Você de hoje em diante me acorda às oito e meia com cheiro de café. Me serve às nove, me dá a roupa passada e a toalha limpa. Tem que lavar e quarar e passar a toalha todo dia, com ferro bem quente, com ferro bem quente pra matar os germes. Roupa de baixo também tem que ser ferro bem quente. E usar desinfetante na lavagem. Varre a casa todo dia porque eu gosto de andar descalço, como quando morava na roça.
- No meu tempo era chão de terra batida, pai me levava nas costas até a cama para não sujar o lençol, que também se passava à ferro na cama. Antes de dormir, aquele cheiro de sabão de coco tostado, cama quente e eu chorava de pena dele e ele me sorria.
- Me traz o jornal depois do café. Eu disse depois. A outra senhora que trabalhava aqui não deu certo por isso. Ela me fazia tudo atrapalhada, acabava que eu saia engolindo o jornal quente entrando no carro lendo borras de café, por favor. Veja bem: eu acordo, tomo banho, tomo café, leio jornal e saio, nessa ordem, todo dia. Mais nada. Você pode comer e assistir televisão. Chego às dezesseis. às dezesseis não apareça pela sala, não venha limpar o quarto, não exista. Vou sentar ao computador pois preciso terminar o romance.
- O senhor vai desmanchar com a moça do computador?
- Não... Estou escrevendo uma história, sabe, você nunca leu nenhuma história? Nem uma história do tipo bandido e mocinho?
- Sei, que nem novela da televisão, né? Li não senhor. Minhas filha sabe ler, graças a deus. Meu marido-que-deus-o-tenha também sabia. Mas eu fui criada com muita dificuldade, meus pais era caseiro da chácara da dona Maria, avó do senhor. Eles tomava conta de sua mãe, ensinava ela as coisa, e eu cuidava das coisa dela, arrumava as boneca, limpava a cômoda. Se eu estudo, a mãe do senhor nem era mãe do senhor talvez.
- Eu vou ver depois uma escola perto daqui com os colegas de faculdade. Assim você aprende a ler, já que minha mãe é minha mãe, sim? Agora faz-o-favor: são dezoito horas. Minha hora de falar com a Fátima. Desapareça e prepare uma sopinha bem leve, estou um pouco indisposto. O horário do jantar é...
- ... às vinte horas. Sim, senhor. O senhor é um anjo, seu Márcio, dona-Tania-que-deus-a-tenha que te abençõe ao lado de deus que ela deve estar. Como deve ficar orgulhosa desse filho tão bom. O senhor vem mesmo como deputado, que eu falo pra todo mundo na escola que o senhor é muito bom e eu voto no senhor. Imagina só, eu, com cinqüenta anos estudando! Nunca é tarde, seu Márcio, nunca é tarde!
Sai falando: "graças a deus! graças a deus!" Márcio resolve visitar a escola com o chefe de campanha.