terça-feira, 29 de abril de 2008

amantíssimo cumpadre,

Não dá pra adoecer assim, simultaneamente. Ando com pulmões traidores há tempos, mas não páro, não largo, não deixo de fumar, como se os cigarros fossem algo de tão sincero quanto minha própria febre. Pois ando febril, ainda, carne mole costas dolentes. Não sou um homem mau, tu bem sabes, contudo, bom não posso ser. Antes de mais nada, agora, sou um homem doente. Entretanto, minha moléstia não impede a mim o tabaco e água de colônia, ainda que me irrite a garganta - a água, nunca o diabo. Quando soube, cumpadre, que andavas acamado, justo hoje, o espanto desatou de mim a febre, os pulmões, a garganta. Como só de chagas estamos feitos, quis saber se a melhora é previsão ou ato de esperançar; trouxe de Minas Gerais dois litros da branca-boa e os cigarros de palhoça. 

Ando fazendo amor demais, sabes que gostaria de tocar-te; tu bem sabes de minhas falcatruas para conceber em mim tantos haveres, no entanto, prefiro mesmo os extremos de minha própria carne - se levanto os braços tu consegues me ver as costelas ! Os músculos estão nos quadris daquela pequena, ela que não deixa a mim e eu gosto; têm mais uso com ela do que comigo, é certo - os músculos. 

Este telegrama só mesmo serviu pra eu te dizer que esta bendita febre me fez pensar em Deus, mais uma vez. Mas tudo continua igual, cumpadre !  Me manda agora tomar remédios, a Adalberta - das nádegas de pão-de-açúcar, panos frios me colocam às ventas, valha-me ! Estou cobiçando a compra de um papagaio, desses bem verdes e que falam de tudo, chamarei de Arnaldo. 

Preciso parar por hoje, cumpadre. Óculos fracos, mão trêmula: apareça que ainda faço de tudo. 
A-v-i-v-a - t-e !

toma prosa - a despeito de política

- Você de hoje em diante me acorda às oito e meia com cheiro de café. Me serve às nove, me dá a roupa passada e a toalha limpa. Tem que lavar e quarar e passar a toalha todo dia, com ferro bem quente, com ferro bem quente pra matar os germes. Roupa de baixo também tem que ser ferro bem quente. E usar desinfetante na lavagem. Varre a casa todo dia porque eu gosto de andar descalço, como quando morava na roça.

- No meu tempo era chão de terra batida, pai me levava nas costas até a cama para não sujar o lençol, que também se passava à ferro na cama. Antes de dormir, aquele cheiro de sabão de coco tostado, cama quente e eu chorava de pena dele e ele me sorria.

- Me traz o jornal depois do café. Eu disse depois. A outra senhora que trabalhava aqui não deu certo por isso. Ela me fazia tudo atrapalhada, acabava que eu saia engolindo o jornal quente entrando no carro lendo borras de café, por favor. Veja bem: eu acordo, tomo banho, tomo café, leio jornal e saio, nessa ordem, todo dia. Mais nada. Você pode comer e assistir televisão. Chego às dezesseis. às dezesseis não apareça pela sala, não venha limpar o quarto, não exista. Vou sentar ao computador pois preciso terminar o romance.

- O senhor vai desmanchar com a moça do computador?

- Não... Estou escrevendo uma história, sabe, você nunca leu nenhuma história? Nem uma história do tipo bandido e mocinho?

- Sei, que nem novela da televisão, né? Li não senhor. Minhas filha sabe ler, graças a deus. Meu marido-que-deus-o-tenha também sabia. Mas eu fui criada com muita dificuldade, meus pais era caseiro da chácara da dona Maria, avó do senhor. Eles tomava conta de sua mãe, ensinava ela as coisa, e eu cuidava das coisa dela, arrumava as boneca, limpava a cômoda. Se eu estudo, a mãe do senhor nem era mãe do senhor talvez.

- Eu vou ver depois uma escola perto daqui com os colegas de faculdade. Assim você aprende a ler, já que minha mãe é minha mãe, sim? Agora faz-o-favor: são dezoito horas. Minha hora de falar com a Fátima. Desapareça e prepare uma sopinha bem leve, estou um pouco indisposto. O horário do jantar é...

- ... às vinte horas. Sim, senhor. O senhor é um anjo, seu Márcio, dona-Tania-que-deus-a-tenha que te abençõe ao lado de deus que ela deve estar. Como deve ficar orgulhosa desse filho tão bom. O senhor vem mesmo como deputado, que eu falo pra todo mundo na escola que o senhor é muito bom e eu voto no senhor. Imagina só, eu, com cinqüenta anos estudando! Nunca é tarde, seu Márcio, nunca é tarde!

Sai falando: "graças a deus! graças a deus!" Márcio resolve visitar a escola com o chefe de campanha.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

escutava leãozinho e bebia um vinho enquanto esperava. não agüentava mais a demora. não via a hora da chuva não interromper mais os abraços. nem do pôr-do-sol queimar os olhos e a pele. preferia que os vinhos fossem tintos e secos, e que as músicas fossem tímidas e suaves. chegando à gênese, gente que gosta de vinho escuta e cede-se ao leito. se rubro, não recorre ao cigarro. a fumaça que se erva é de outro prumo. que me vai de pessoal nessa embromada embrionária? em leito escorre sábia aspereza, adormecida desejada reprimida uniforme.
encontrei a mim feito criança quando chegaste com muitas horas, sorriso vasto, olhos grandes - quantos olhos tu tens ! -, e estendi a ti meu abraço e suspiro aliviado em enfim ver a ti ali, matéria. e tu fazes sempre a coisa diária, com teus cafés e dedos fortes e eu calcando teus tornozelos de homem lúcido e mudo, a loucura-amor de causos que vou despetalando das mangas, com desordenada incandescência na carne trêmula que carrego querendo tanto estar ali (em ti), dissimulando a altivez sabendo a delícia do não-compreender teus sinais, a euforia refinando afinidades
tão bom amar a ti agora.
enquanto brinco com meus cabelos, em novelos, todos os fios, quase não há mais dedos meus em mim, tu me olhas como se do avesso me soubesses e eu te digo tanto, mas tanto: pois cale a mim um pouco ! se já nem eu suporto mais minhas divagações, gostaria de ouvir que há amor por trás deste rosto pequeno, cale a mim, rapaz, não posso mais sustentar estas minhas palavras de profeta-menina, fiquei miúda, não sentes ?, depois que te pertenci. 
que eu possa te convencer que o tento que te espero não faz de mim tão assim solícita aos teus tempos
se entendêssemos o abismo em que nos metemos, só nos restariam as bocas, simultâneas, para charcar a língua.